Animal e Racional - Parte I
Coluna de Ivan Faé
Publicado em 21/03/2023 às 07:49h
Capa Animal e Racional - Parte I

Os textos mitológico/religiosos sobre a origem do universo, assim como a origem do ser humano, são carregados de significados e apresentam uma inteligência muito aguçada na percepção dos dilemas humanos. Essa inteligência é ainda mais impressionante se considerarmos que são textos escritos numa antiguidade remota, sem nenhuma informação científica nem os conhecimentos da psicologia moderna, e que lança uma luz para alguns dos nossos dilemas contemporâneos Na estória bíblica de Adão e Eva, ambos são expulsos do paraíso por comerem do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, o que lhes era proibido (tal interpretação sobre o fruto que dizem ser uma ‘maçã’ é uma invenção tola, que impede a compreensão do verdadeiro sentido do texto). Os gregos têm uma estória similar, assim como vários contos, chamo atenção ao mito de Prometeu.  632c17

Prometeu era um semideus que, vendo que os homens viviam no escuro e no frio, roubou o fogo - que era algo exclusivo dos deuses - e o deu aos seres humanos, que se aqueceram e se iluminaram. E foi duramente castigado por isso. Rollo May, em seu livro “O homem a procura de si mesmo’’ faz uma bela reflexão sobre as duas estórias. Desenvolvo aqui apenas uma consequência de uma das interpretações possíveis dos textos.

Em ambos os casos, o ser humano teve a posse de algo que não era para ser seu, uma coisa superior ao que parecia lhe convir. Assim como o fruto do conhecimento do bem e do mal, quanto o fogo, simbolizam nossa capacidade de conhecimento e decisão, nossa liberdade de escolha, que nos torna distintos de todas as outras espécies criadas. Embora essa aquisição seja essencial para a constituição do que somos, os textos apresentam como uma conquista ilegal, que tem como consequência os castigos. E é aqui que está a inteligência dos textos. Eles conseguem captar nossa relação ambígua com essa capacidade e todos os problemas que o conhecimento e a liberdade nos acarretam, que estão nas raízes das nossas ansiedades. É como se quisessem dizer... éramos felizes e não sabíamos, na época da inocência do paraíso. Mas a infância, tanto a nossa individual como a da espécie humana – antes que adquiríssemos as capacidades cerebrais que nos permitiram existir como ‘Homo sapiens’ – não volta mais. Temos que aprender a lidar com essa nova capacidade que, dependendo do ângulo que observamos, pode ser uma benção ou uma maldição. 

Somos animais, mas com algo que foi roubado dos deuses, ou seja, algo que pertencia apenas aos ‘deuses’, tendo assim que lidar com uma natureza que nos puxa para a animalidade e esse impulso ‘divino’ que nos obriga a ir além que é a nossa capacidade de amar e racionalizar.

Tribos primitivas tentavam lidar com isso, em rituais que simulavam a volta à animalidade. Por isso o uso de máscaras de animais, os alucinógenos, as danças, as bebedeiras, (como as festividades oferecidas para Baco, conhecido como o deus do vinho, que se tornou o símbolo do hedonismo) e é claro as orgias que buscavam, mais que qualquer coisa, entorpecer a consciência e levar o homem de novo àquela sensação de unidade primitiva e inocente com a natureza, à sua infância, ao seu estado animal. Mas no dia seguinte, ado a embriaguez, tudo sempre volta ao normal, e com esse incômodo normal com o qual não sabemos lidar direito. Daí para os nossos rituais tribais contemporâneos, só muda o cenário. No mais, inclusive o dia seguinte, nossa condição é sempre a mesma. Esse incômodo deve ser o que levou os autores dos textos antigos a identificarem esse estado com os castigos, os de Prometeu ou os nossos.

Só podemos sair dessa situação se compreendermos que não há fuga para ‘baixo’. Cedo ou tarde, teremos que nos dar conta disso. Sair para ‘cima’ é desenvolver, no mais alto grau, a nossa capacidade de amar e racionalizar. Se tomarmos essa tarefa a sério, poderemos efetivamente lidar com a nossa natureza animal e corpórea e orientá-la de acordo com nossa natureza superior. Assim poderemos compreendê-la como um dom e não como produto que foi roubado.