Animal e Racional - Parte II
Coluna de Ivan Faé
Publicado em 22/03/2023 às 14:38h
Capa Animal e Racional - Parte II

No texto anterior, aprestava a apreensão entre nossa natureza material e o impulso divino que em nos foi atribuído. Essa apreensão é interpretada muitas vezes como uma deficiência da nossa natureza, e que nos causa ansiedades e nos faz, de certo modo, invejar os animais e tentar viver como eles. Essa é a saída para baixo, que além de não resolver o problema, produz ainda mais ansiedade. A saída para cima é o desenvolvimento da nossa capacidade de amar. 1t3g4j

Quem já ou pela experiência de ar uma noite em claro, cuidando de um filho doente, vai entender melhor o que quero dizer com amor. Não se trata de romance ou impulso apaixonado, pois não temos controle sobre essas coisas, portanto, não podemos decidir agir baseados nelas. O amor (naquilo que os gregos chamam de ágape) é essa capacidade de doar-se, de cuidar, de colocar os próprios interesses ou desejos em segundo plano para ir ao encontro do outro, nas suas necessidades. 

Por que esse amor é a resposta para nossa inquietação? Segundo Erich Fromm, nossa angústia nasce da nossa sensação de separação, que tem tudo a ver com o apresentado no texto anterior. Essa separação e estranheza não existem no mundo animal, mas, como já apresentei, não podemos voltar para lá. E por isso que os prazeres e vícios que nos iludem e dissipam não respondem às nossas angústias e só nos mergulham cada vez mais no fosso, gerando sempre mais distanciamento e separação. A saída é o amor ágape, pois só ele pode produzir em nós a motivação necessária para o esforço e a disciplina que nos levam a evoluir. 

Enquanto nos leva ao encontro do outro, faz-nos reencontrar a nós mesmos, pois só pode se doar aquele que já tem a si mesmo. Nesse caminho, vamos na direção da reconexão, avançando para cima. O termômetro que mede essa evolução em nós é a qualidade dos nossos relacionamentos. É com as pessoas do nosso convívio (e não com aquelas que imaginamos de estar nele) que treinamos e produzimos essa realidade e, ao produzi-la, diminuímos as distâncias e nos reconecta. É só por aí que aprenderemos a lidar com nossos impulsos, equilibrando o animal e o divino, pois só desse equilíbrio pode emergir o que é verdadeiramente humano. 

Aristóteles identificava relacionamentos baseados na (utilidade) e no (prazer). Esses dois tipos se contrapõem ao amor de que descrevo, pois o que os move é algo que provém da própria pessoa, mas tem a ela mesma como centro. Relacionamentos desse tipo são buscados com vistas ao proveito que o outro pode proporcionar e evidentemente se desgastarão e serão abandonados quando o proveito diminuir consideravelmente ou desaparecer. Não me parece exagero afirmar essa é quase que a regra da sociedade atual e a causa de muitas frustrações, medos, violência, doenças e tantas calamidades que nos assolam nesses tempos complexos. Esses são alguns dos dilemas contemporâneos de que apresentava no texto anterior, e sobre os quais queríamos lançar alguma luz. Herdeiros de Adão e Prometeu, vagamos errantes, tateando sem saber o que fazer com esse peso que a (consciência da separação) nos impõe. Somos quase que esmagados por uma cultura do prazer, que nos ilude de mil formas e que só nos torna cada vez mais incapazes de amar, deteriora nossos relacionamentos e só aprofunda nosso drama. Nossa humanidade clama por sentido e realização. Mais cedo ou mais tarde, cada um terá que encarar o desafio pessoal dessa lamentação.